Sexta-feira, 13 de outubro de 1972, foi quando o turboélice Fairchild que levava jovens jogadores de rúgbi uruguaios para uma partida no Chile, mergulhou violentamente no Valle de Las Lágrimas.
O Vale das Lágrimas, ponto a quase 4 mil metros de altitude na maior cordilheira do planeta, foi onde ele e amigos sobreviveram a 72 dias em meio a temperaturas abaixo de -30°C, abrigando-se na fuselagem do avião que caiu quando viajavam do Uruguai ao Chile e graças à decisão de se alimentar dos corpos de companheiros mortos. Uma das histórias de luta por sobrevivência mais notórias do mundo.
“No início, eu quis guardar aquilo como quem guarda algo em um cofre, mas era impossível, não nos pertence. Me orgulha ser parte dessa história”, conta o sobrevivente Roy Harley
Mais do que fome, frio e sede, o mais difícil era a incerteza de saber se estariam vivos no dia seguinte, garante Roy que, com 1,80 metro de altura, pesava 37 quilos quando foi resgatado da montanha.
“Éramos máquinas de sobrevivência sem nos importar com o que estava acontecendo. Não chorávamos os amigos mortos porque isso tirava nossa energia” Roy Harley
A viagem entre Montevidéu, no Uruguai, e Santiago do Chile deveria levar três horas. Durou 72 dias — o resgate só chegou em 22 de dezembro de 1972, há exatos 50 anos.
Dos 45 passageiros a bordo, apenas 16 sobreviveram.
“Estávamos rodeados pela morte, mas tínhamos luz nos olhos e na alma, e foi isso que nos permitiu sobreviver. Apesar do inferno que vivemos, vivíamos cada segundo como se fosse o último”, descreve Gustavo Zerbino, outro sobrevivente do desastre.
Deixados na neve, depois de ouvirem pelo rádio que as buscas tinham sido suspensas, dez dias após o acidente, aqueles jovens cheios de vontade de viver fizeram de tudo para sair dali. Nem que para isso tivessem que se alimentar com nacos de carne dos companheiros mortos.
O início do martírio
Antes de seguir para o Chile, o turboélice bimotor fretado da Força Aérea do Uruguai teve que fazer uma parada em Mendoza por conta do mau humor do clima andino, forçando o time de rúgbi do Old Christians Rugby Club a um pernoite não previsto em solo argentino.
No dia seguinte, a situação climática não era diferente, mas a última perna da viagem foi autorizada mesmo assim. Menos de uma hora depois, a aeronave entrou “num poço de vácuo”, perdeu velocidade e, ao se chocar com montanhas pontiagudas, partiu-se em duas.
Logo após o acidente, os então 29 sobreviventes dividiram um espaço de 6,5 metros de comprimento por três de largura no interior da fuselagem.
Nos primeiros dias, eles chegaram a escutar ruídos de motores e até puderam ver pequenas aeronaves sobrevoando o local do acidente. O cansaço, a confusão mental e os ventos ruidosos enganavam as esperanças.
Apesar da comemoração precipitada, aquele era só o começo.
As duas primeiras mortes aconteceram dois dias depois da queda. Outros oito passageiros morreram em uma avalanche no final do primeiro mês de espera.
Destroços do avião viraram abrigo para os jogadores do time uruguaio de rúgbi
Imagem: Sobrevivientes de los Andes/LatinContent/Getty Images
A rotina na neve
A cada tentativa de transpor uma montanha, durante as diversas buscas por ajuda, os sobreviventes do acidente de 1972 se viam diante de um infinito tapete nevado.
“Quando esperávamos ver verde, víamos 120 quilômetros de neve por todos os lados, como ondas do mar. Nos sentíamos no lugar mais remoto da Terra”, lembra Gustavo Zerbino.
Do lado de fora, as temperaturas chegavam a -30 °C. Dentro da fuselagem, os sobreviventes cochilavam ou dormiam abraçados, em intervalos curtos para evitar o próprio congelamento.
O estofamento das poltronas era usado para aquecer os sobreviventes e a única proteção térmica era a frágil barreira de malas postas na porta aberta do que sobrara da aeronave.
“A gente tinha muito medo de nos afastar do avião, que era o refúgio que nos protegia das inclemências da montanha” Roy Harley
A água consumida era gelo derretido no funil improvisado em uma chapa metálica.
Infecções viraram rotina e um dos feridos chegou a ser operado com uma lâmina de barbear pelo então estudante de Medicina Roberto Canessa.
A pouca comida disponível, que se resumia a conservas, bolachas e chocolates, era triturada na boca de alguns para alimentar os que tinham os “dentes afrouxados” pelo escorbuto (falta de vitamina C no corpo). Pastas de dente foram servidas como sobremesa.
O (polêmico) oitavo dia
Embora cogitada em silêncio, a ideia de se alimentar dos passageiros mortos demoraria alguns dias. Era só uma questão de tempo (e de fome).
No oitavo dia, antes que os Andes os tragassem de vez, os estudantes fizeram os primeiros cortes nos corpos com cacos de vidros na pele endurecida pelo gelo.
Assim como descreve o escritor e jornalista Pablo Vierci no livro “A Sociedade da Neve” (Companhia das Letras), para evitar a traumática possibilidade de se alimentarem de algum parente ou conhecido, os corpos colocados do lado de fora do avião não eram identificados.
Por um tempo, a decisão dos sobreviventes foi uma polêmica explorada pelos meios de comunicação da época.
No ginásio do colégio Stella Maris, uma semana depois do resgate, Alfredo Delgado Salaberry fazia uma “comovedora revelação” sobre as denúncias de que o grupo havia praticado antropofagia.
Cartas de despedida
Para ajudar a ocupar a mente nos dias de neve pesada que os impedia de deixar o avião, lápis e pedaços de papel encontrados foram usados para que os sobreviventes pudessem escrever mensagens para seus familiares.
“Quando chegou a minha vez, fiquei petrificado e não consegui. Decidi que não ia escrever porque se eu escrevesse seria como se eu estivesse me despedindo”, conta Gustavo Zerbino.
Último a ser tirado dos Andes, no segundo dia de resgate, ele se incumbiu de levar uma a uma, aos familiares que não puderam ter seus filhos de volta, as cartas de seus companheiros — como a que Gustavo, emocionado, leu durante a entrevista a Nossa. Veja abaixo um trecho: